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ADUR Online #57: A privatização da Eletrobras: apagando a luz

ADUR Online

6 de setembro de 2021

Por Eduardo Scaletsky

Texto originalmente publicado no site Terapia Política

 

A privatização da Eletrobras não pertence ao debate entre mais ou menos liberalismo para o Brasil. A lei aprovada por Bolsonaro para a privatização do Grupo faz parte da arquitetura de destruição que vai da ocupação ilegal da Amazônia à rejeição da vacina e aos ataques à democracia. O momento para privatizar é inadequado e a escolha do modelo de privatização torna incerta a governança da empresa privatizada, colocando em risco a segurança energética do país.

Diferentemente do que ocorreu no governo de Fernando Henrique Cardoso, no qual a privatização era parte de um conjunto de projetos liberais que pretendiam dar uma nova roupagem ao desenvolvimento do país, no governo Bolsonaro, a defesa do liberalismo é apenas um ardil para conseguir um reforço de caixa estimado em mais de 100 bilhões de reais para o Tesouro Nacional – parte com a outorga por 30 anos e parte pela venda no mercado secundário de ações de propriedade da União. São recursos para financiar o populismo e garantir votos parlamentares contra o impeachment.

O conjunto da obra é bizarro! Até mesmo Elena Landau, coordenadora do Plano Nacional de Desestatização (PND) durante o governo PSDB, espantou-se, e assinalou sete erros graves da lei. Um dos mais graves foi o de ter delegado ao Congresso a definição do modelo de privatização, assunto técnico que é o resultado de estudos bastante complexos. O padrão é encerrar a participação do legislativo na autorização para privatizar. Desta feita, Bolsonaro terraplanou os estudos, e o modelo de privatização virou uma lei, com seus jabutis nos galhos.

O momento impróprio e o modelo inadequado de privatização

Em plena crise hídrica,[1] o governo está vendendo 80% da geração de energia com base hidroelétrica. Apesar das medidas preventivas implementadas pelos governos petistas para aumentar a segurança energética do país – expansão da geração por outras fontes –, o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) revisou nestes últimos dias suas previsões e admitiu o risco de apagão, em outubro ou novembro deste ano.

Um apagão pode complicar ainda mais a reeleição de Bolsonaro, já fragilizada pela alta nas tarifas de energia e pela inflação (8,6% nos últimos doze meses). A próxima notícia deve ser uma nova alta dos juros e seu consequente efeito negativo sobre a atividade econômica.

Seguindo o padrão obsessivo-compulsivo pelo risco, o modelo de privatização encaminhado pelo governo prevê uma emissão de ações para subscrição pública, da qual a União não irá participar. Complementarmente, o Tesouro Nacional foi autorizado a vender suas ações, que atualmente representam 51,85% do capital votante.

O arremate da obra é o artigo que proíbe os acionistas ou grupo de acionistas de deterem mais de 10% das ações com direito a voto, que é o jabuti-rei, pois impõe o modelo de governança à futura empresa privada, que só poderá ser alterado por uma nova lei.

holding Eletrobras nunca primou pelas boas práticas de governança, seja pelas recorrentes intervenções governamentais sobre os rumos empresariais, seja por não ter força para impor políticas estratégicas a Furnas, Eletronorte ou Chesf, em geral comandadas pelos poderes políticos regionais. Vender, sem permitir que um grupo de acionistas exerça o controle da holding é uma aventura plena de riscos, aspecto que ganha particular relevância ao nos referirmos à venda de um terço da geração de energia do país.

O quadro político e econômico é tão desfavorável ao governo que talvez eles não tenham tempo para privatizar.

Superando o estado-empresário 

Circula por aí uma lista de empresas a serem privatizadas. Na última semana foi a vez dos Correios. São notícias irresponsáveis geradas pelo governo das fake news, que ensejam uma conversa sobre o lugar da intervenção estatal no domínio econômico, especialmente porque nos remete à constatação de que o Brasil pós-democratização não resolveu bem esta questão. Sob o título de reforma do Estado, de 1988 até hoje, houve apenas iniciativas pontuais, que muitas vezes tinham sinais trocados.

Os governos liderados pelo PSDB focaram no combate à inflação, ao lado de um programa ambicioso de privatizações. Fernando Henrique Cardoso deu passos para o ajuste, porém não construiu os caminhos para o futuro, foi um governo de medidas de curto prazo. Os governos petistas (2003-2016) aperfeiçoaram algumas mudanças regulatórias, mas o maior legado foi a inovação nas políticas públicas de redução da desigualdade. Nenhum dos governos teve força política suficiente para iniciar um processo de reforma estrutural da ação estatal no domínio econômico.

O desafio

As empresas estatais do setor elétrico devem ser privatizadas? Apesar das experiências de privatização de empresas do setor ocorridas no passado não terem aumentado o risco energético do país (Eletrosul, Escelsa e a maioria das distribuidoras estaduais), no atual contexto político e econômico, a ideia de privatizar deve ser definitivamente afastada.

Mas é necessário aprofundar o debate e incentivar a busca de paragens livres da obrigação de manter intacto o modelo do estado-empresário. A intelectualidade brasileira, detentora de uma imensa massa de conhecimento, deve encarar o desafio de inovar na elaboração de um projeto de desenvolvimento sustentável e distributivo.

A partir do final dos anos 40 do século passado, a Cepal soube identificar os problemas para o desenvolvimento periférico e sugerir que o Estado fosse estruturado para  intervir na economia. No caso brasileiro, sugeriu seguir uma modelagem que priorizasse a intervenção direta na produção de bens e serviços através da organização de um estado-empresário, ocupando setores estratégicos de infraestrutura: energia elétrica, transportes, siderurgia, comunicações e extrativismo mineral, entre outros. As políticas cepalinas foram fundamentais, mas datadas. Podem e devem ser referência, mas não repetidas.

Vale a pena uma pequena digressão, para lembrar que neste mesmo processo de industrialização, mecanismos endógenos tornaram o Brasil um dos países com maior concentração de renda e exclusão social. A este respeito, cabe observar que o Estado desenvolvimentista não veio acompanhado por políticas eficazes para garantir uma melhor distribuição dos ganhos de produtividade.

Superar o estado-empresário e pensar um papel diferente para o Estado no plano econômico é reforçá-lo em suas atividades de competência exclusiva, entre elas a de regulação, fiscalização, fomento e planejamento. Indico algumas diretrizes, que devem ser suficientes para dar ideia das novas ênfases sugeridas para intervenção estatal.

  1. Aperfeiçoar os marcos regulatórios e tornar as agências reguladoras órgãos efetivamente de Estado – nada além dos termos constitucionais, que não vêm sendo seguidos, por estarem as agências sujeitas à influência dos governos ou capturadas pelas empresas do setor. Neste sentido, vale destacar o aperfeiçoamento ocorrido nos marcos regulatórios do sistema financeiro nacional a partir dos acordos de Basiléia e do fortalecimento do Banco Central enquanto órgão de Estado.
  2. Reforçar as ações para concessões públicas e parcerias público-privadas, dois caminhos para reduzir a necessidade imediata de recursos públicos para os investimentos na melhoria dos serviços públicos com os investimentos privados.
  3. Financiar os investimentos para uma nova industrialização e o desenvolvimento da ciência, tecnologia e inovação. O BNDES, o Banco do Brasil, a Caixa Econômica Federal e a Finep e as agências regionais possuem uma expertise com poucos paralelos no mundo. Neste sentido, o Brasil já possui uma estrutura consistente para impulsionar o financiamento. O que falta é articular estas estruturas operacionais ao planejamento estratégico.
  4. Tornar o poder de compra do Estado um instrumento para a expansão estratégica do desenvolvimento.

À luz destas considerações, vamos visitar o estado-empresário, hoje composto por 157 empresas federais controladas – 45 diretamente, 113 indiretamente (subsidiárias), das quais 18 dependem de recursos do orçamento fiscal.

O nível de governança é precário, a começar pela pulverização da função do Estado como acionista controlador. A supervisão empresarial está espalhada por 11 ministérios, o controle está no Ministério da Economia, mas as decisões estratégicas e as indicações dos administradores continuam sendo feitas ao sabor dos ventos políticos. A interferência presidencial na Petrobras para a determinação dos preços dos combustíveis é uma ilustração perfeita da desgovernança.

O conhecimento acumulado sobre este problema aconselha uma reforma na função do Estado como acionista, para a adoção de melhores práticas de governança. Aprofundar nesta direção pode levar a propor a privatização desta ou daquela empresa, a reestruturações empresariais, ou ainda a mudanças na natureza jurídica, entre outros rumos possíveis. O principal, no entanto, é tornar o Estado um proprietário mais atento e cuidadoso em relação às melhores práticas de governança, entre tantas razões, para evitar que as empresas fiquem vulneráveis aos ataques de governos sem compromisso com o futuro, como o atual em relação à Eletrobras.

O leque de assuntos sobre estas questões é enorme e o desafio da esquerda é o de inovar e pensar em caminhos para a ação estatal neste novo contexto mundial. Foi válido o papel do Estado proposto pelos governos nos anos 50 do século passado para enfrentar os desafios econômicos daquele contexto, mas é necessário buscar alternativas de um novo papel para o Estado, que seja capaz de desatar o nó do baixo crescimento e desenvolvimento social e humano do Brasil.

[1] Clique aqui para ver o alerta de Victor Zveibil sobre a crise hídrica no Rio de Janeiro.

 

Eduardo Scaletsky é economista, doutor pela UFF, professor titular da UFRRJ, foi diretor do DEST/Ministério do Planejamento, da CMB e da FINEP, autor do livro “O patrão e o petroleiro”.

*ADUR ONLINE é um espaço aberto aos docentes e pesquisadores da UFRRJ e de outras Universidades também. As opiniões expressas no texto não necessariamente representam a opinião da Diretoria da ADUR-RJ.

 

 


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